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Cozinhas Solidáriaajogo -as são um recurso de sobrevivência

As mobilizações políticas populares estão vivas. Não foram completamente desmanteladas,áriassãoumrecursodesobrevivêaajogo - desmobilizadas, despolitizadas. Para a maioria de nós, não há tempo para a apatia, para o desânimo, para a indisposição, para não ouvir o próprio estômago, o alheio, ou para não pensar no futuro, seja ele imediato ou aquele que aparece mais lentamente. Aos poucos, pelas mãos daqueles que estão servindo café e comida, e que decidiram se organizar em uma das dezenas de Cozinhas Solidárias espalhadas pelo país, as portas de entrada para esse futuro, que é também quase um agora individual e coletivo, são construídas.

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Esta construção está sendo feita pelas mãos da juventude, idosos, homens, mulheres, pessoas em situação de rua, trabalhadores informais, precarizados, aposentados, famílias que são o público alvo dos programas sociais que seguem existindo por um fio, famílias recém despejadas para a rua, universitários e pelos pequenos agricultores. Todos se encontram neste presente-futuro oferecido pelas cozinhas que se muitas vezes foram – e continuam a ser – espaços de opressão, aos poucos, vão sendo ressignificadas como espaços de mobilização, de política e de um presente cotidiano que se articula para o futuro.

São pessoas que estão diariamente servindo as famosas “quentinhas”, as gostosas “marmitas” que são feitas com alimentos majoritariamente entregues direto do campo, em parceria com os movimentos pela reforma agrária, e por produtores que chegam carregando caixas de papelão com hortaliças, orgulhosos de seu produto, anunciando para o olhar de inspeção da cozinheira que “é de hoje viu, tia!” enquanto depositam as caixas no mesmo cômodo onde já estão sacos de arroz orgânico descansando em cima de uma mesa. Alguns produtores não só fazem a entrega, mas ficam e ajudam no preparo, na organização, na conversa, no debate.

Quando as 200 marmitas estão prontas para a distribuição, uma das pessoas que está em situação de rua e que utiliza a cozinha, já assumiu voluntariamente a organização da fila. Ao longo da manhã conversou com o pessoal, ajudou a manter a marcação dos lugares na fila de aproximadamente 250 pessoas que estão aguardando pela quentinha.  Durante a distribuição da comida, ajuda a garantir que todos foram atendidos e quando a entrega termina, volta as pedras, que serviram às dezenas de pessoas marcando seu lugar na fila, para embaixo da árvore.

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Enquanto a fila vai se formando, desde cedinho, há um cafezinho que é servido em parceria com um projeto de extensão universitária para motivar a conversa e uma abordagem menos fiscal, que se tornou a prática desde os anos de 1990 com a propagação de programas sociais e sua protocolar forma de atendimento que se fez homogênea nos anos 2000, em nome da “eficiência da gestão”. É o retorno social das universidades em mão dupla: gente sendo formada para sua função no serviço social, ali na rua, lidando – ainda que voluntariamente – diretamente com quem terá que lidar mais adiante, vendo e ouvindo os problemas para pensar em soluções inovadoras para as nossas questões sociais.

Ao cafezinho se junta a pessoa que é conhecida como “enfermeira” do pessoal que está na rua, não é de formação, mas é praticante e quem cuida do pessoal quando há necessidade onde a saúde pública não tem chegado. De vez em quando, alguém que está passando faz uma parada meio tímida e pergunta se “tem um café aí?”, e só para confirmar questiona “mas é de graça?!”, e enquanto espera os segundos do servir, conta que está vendendo recicláveis e que estava indo mesmo pegar um café “ali” e viu esse no caminho e pensou em perguntar. Uns minutos depois, entendeu que também haverá comida, e que pode ficar e se alimentar, basta entrar na fila. A cozinha é um recurso de sobrevivência e de acolhimento que vem sem burocracia, sem investigação, sem maiores perguntas, sem julgamentos.

Na fila que se forma ao longo da manhã até as 13h, quando a refeição é servida, e que acaba em vinte ou trinta minutos, há pessoas com curativos, idosos que puxam conversa, muitos homens com roupas de trabalho, grupos de amigos, famílias inteiras. Há mãe e filha que percorrem, utilizando um tipo de passagem social, cerca de 10km todas as semanas para se alimentarem. Há famílias com crianças em carrinhos, brincando umas com as outras enquanto os pais aproveitam a água potável disponível e o tempo da espera para as atividades do cuidar.

Não há dúvidas de que o público em condição de pobreza e de extrema pobreza mudou e se ampliou nos últimos anos. Ao observar quem é atendido por este tipo de mobilização social, é possível notar a caracterização que tem aparecido em dados como os divulgados pelo relatório da Rede Penssan, que indicou o perfil das 33,1 milhões de pessoas que estão sem ter o que comer em 2022.

A rotina de distribuição das marmitas aqui descrita foi documentada na Lapa, no Rio de Janeiro, um dos mais conhecidos e também desassistido pontos turísticos da cidade. Desde 2021, esta cozinha é uma das muitas Cozinhas Solidárias em funcionamento por meio do projeto homônimo do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto, o MTST. Esta cozinha tem a particularidade de atender a população em situação de rua. Mas lida com outros dois segmentos populacionais que também acompanham os dados da fome: trabalhadores de aplicativo e trabalhadores rurais. A distribuição de marmitas se divide ao longo da semana para cada um destes públicos, sendo o último o que consegue, aos poucos, com o apoio das cozinhas programar a produção e o futuro.

Pequena produção agroecológica

A Cozinha Solidária do MTST fornece comida feita com alimentos agroecológicos, ou seja, sem agrotóxicos e produzidos de forma sustentável, que ao serem adquiridos pelas cozinhas, permite aos pequenos agricultores planejar o plantio, prevendo aportes, auxiliando, tanto na transição agroecológica, quanto na fixação das famílias em suas áreas. Isto adquire um peso maior frente ao desmonte do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), modificado até se tornar irreconhecível na mesma Medida Provisória que pôs fim ao programa sócio assistencial Bolsa Família (PBF) e instalou o programa de financeirização da assistência social, o Auxílio Brasil, mas também indica, em meio a este cenário, uma porta para um futuro menos desigual e de maior justiça social.

É um indício de que já temos os caminhos para o equilíbrio ambiental, social e de saúde. É o que especialistas da nutrição, da saúde, da pequena produção agrária, quilombolas, ativistas e povos indígenas estão nos dizendo há anos: não há saída sustentável que não passe pelo repensar da forma como nos alimentamos e como nos relacionamos com a terra. A esse circuito de iniciativas atuais soma-se o desenvolvimento de milhares de bancos de alimentos pelo país que estão sendo cadastrados por meio de uma parceria entre a Ong Ação da Cidadania e o Google Brasil.

Histórico das Cozinhas Solidárias

Cozinhas Solidárias são uma iniciativa conhecida na história brasileira. Nos anos de 1980 e 1990 apareciam nas periferias, de forma localizada pelas mãos das associações de moradores. A partir de meados dos anos de 1990, a ideia delas ressurge de forma diferente, a partir da distribuição de alimentos em escala nacional, tentando alinhar a reforma agrária ao consumo pela alimentação, neste período é que estão localizados o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), extinto em 2019, o Plano de Segurança Alimentar e o Fome Zero. Todos estes projetos confluíram ao longo dos anos de 1990 num cenário que foi impulsionado, pela Campanha da Ação da Cidadania (naquele período, contra a Miséria e pela Vida), que em relação e em diálogo com estas outras iniciativas, evocou o direito à segurança alimentar.

Entretanto, em fins dos anos de 1990 e início dos anos 2000, quando emerge o Programa Bolsa Família, o contexto de reivindicações populares dos anos de 1990 já estava revirado pela aplicação da reforma macroeconomia em um Estado orientado por políticas neoliberais. E a despeito da universalidade dos Direitos Sociais previstos em nossa Constituição, estes passaram a ser ofertados como soluções para necessidades individuais; como serviços socioassistenciais. Nos últimos anos, porém, o empobrecimento acelerado e o retorno do país ao Mapa da Fome colocaram em xeque a escolha de caminhos individuais e evidenciaram que a solução de nossos problemas sociais não é e não pode continuar a ser individual; deve ser coletiva e desenvolvida pelo Estado brasileiro por meio de políticas públicas sociais.

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A Cozinha da Lapa, parece reproduzir a cena de uma das dezenas de Cozinhas Solidárias do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto. Nela há uma panela de 40 litros, um fogão tipo industrial de quatro bocas doado, no espaço de um prédio ou de uma sala até então sem função social e que foram ocupados, cedidos ou alugados através de doações, e que são organizados por pessoas que estão engajadas em produzir comida para quem empobreceu junto ao tecido social do país e não consegue se alimentar.

Entretanto, o projeto ainda não é uma política pública, e é preciso que passe a ser considerado todo o seu potencial de (re)ativação de circuitos de futuro. Tudo é feito com doações, há uma geladeira que precisa de conserto, o fogão precisa ser maior, falta mais uma panela de pressão grande e outras panelas de 20 e 40 litros. As doações são prioritariamente direcionadas para a aquisição dos alimentos e para a manutenção das cozinhas existentes, assim como para a abertura de novas cozinhas, tal como ocorreu mediante a tragédia de Petrópolis, local para o qual a Cozinha foi levada e aberta com o material emprestado da cozinha da Lapa. É a engenharia da urgência para cobrir a ausência do Estado para parte da população.

Quando a comida está pronta para ir às marmitas na bancada destinada a montagem, há uma linha organizada com medidas para montagem definidas pelo perfil populacional atendido. Como fui informada, quando são majoritariamente pessoas em situação de rua “não adianta encher até a boca a marmita porque as pessoas não conseguem comer tudo”, basicamente: “sem fazer as refeições com frequência, na rua, o estômago diminui”. No dia aqui relatado, e como em muitos outros, havia mais gente que quentinhas disponíveis.

A cozinheira, de 67 anos, lamentou não poder fazer mais, ao passo em que respondia pacientemente as minhas perguntas em meio a sua pausa para o café. Ela ressaltou que faz questão que as marmitas sejam sempre lindas e bem montadas pois “o povo come com os olhos”. Me disse ainda do orgulho e da alegria que sente em preparar as refeições e assim, como todos nós – entre panelas sendo batidas e ossos sendo empunhados como protesto, ou comidos como sobrevivência – torce por tempos melhores em breve. Ela coordena o ritmo da cozinha, ali todos são bem-vindos, contanto que o trabalho dela não seja atrapalhado. Nossas cozinhas nunca foram tão políticas, apresentam um dos caminhos para as políticas sociais que serão necessárias para a saída da fome, para a reconstrução de nosso tecido social e indicam o que precisaremos olhar ao pensar a reconstrução de nossas referências políticas e sociais.

Denise De Sordi é historiadora, pesquisadora dos programas de pós-doutorado do Departamento de Sociologia da FFLCH/USP e da Casa de Oswaldo Cruz (COC), Fiocruz.


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